Este artigo tem como objetivo explorar um termo que é amplamente utilizado para descrever a prática de trabalho coletivo auto organizada, mas que, ao mesmo tempo, carrega um significado de luta anti-hegemônica ao ser empregado como sinônimo de projetos autogestionários. Os mutirões remetem à uma reflexão da importância do trabalho coletivo, e da luta popular, e de como a prática arquitetônica, e a construção civil se relaciona com esses temas.
A palavra mutirão vem do tupi-guarani mutyrõ e significa o trabalho comum, em conjunto, coletivo. Um conceito que só pode ser plenamente compreendido ao se considerar a colonização brasileira, e os anos de escravidão formalizada dos corpos indígenas e negros, e a forma como essa marginalização, e o racismo estrutural, se materializa no território brasileiro, mais especificamente, porém não unicamente, nas regiões dos grandes centros metropolitanos e suas periferias.
O crescimento desses centros urbanos se deu, principalmente, de forma horizontal e espalhada pelo território, com as minorias sendo, a partir da lógica do capital, jogadas para as regiões periféricas da cidade, onde individualmente construíram suas moradas comprando material com o salário escasso e executando a obra com o próprio trabalho braçal. A periferia das cidades foi majoritariamente construída pela figura do pedreiro que, durante a semana, trabalha em uma obra convencional acompanhada por arquitetos, engenheiros e um arsenal de infraestrutura e recursos, enquanto, de fim de semana, parte do aprendizado do seu trabalho formal e constrói a sua própria casa no tempo que tem livre, e com a ajuda dos vizinhos, amigos e parentes.
Francisco de Oliveira descreve a prática com a simplicidade que sentimos ao pensar quão cotidiana é essa situação: “havia um quesito bastante interessante sobre a forma como as casas tinham sido construídas. Eram construídas em mutirões, ou autoconstrução de forma mais geral. Não como esses de hoje, mas os mutirões da tradição: você chama o compadre no fim de semana, toma uma cerveja, come uma lingüiça frita e vai fazendo a casa aos pouquinhos.” (OLIVEIRA, Francisco de. 2006) Essa prática de construção coletiva, solidária, de ajuda mútua representa a forma encontrada pela população periférica de sobreviver dentro de um sistema que exclui, não só socialmente, mas também territorialmente.
O contraste mais evidente entre o trabalho mutirante e o trabalho da construção formal está no valor daquilo que está sendo produzido. A Usina-CTAH define o mutirão como “uma associação de trabalhadores para a produção de uma mercadoria sui generis, que não é produzida imediatamente para o mercado, mas para subsistência” (USINA CTAH, 2008). Apesar da definição estar se referindo especificamente ao mutirão autogerido, vinculado normalmente a um movimento social que luta pelo direito à moradia, dos quais trataremos mais à frente, essa definição se encaixa também quando pensamos na autoconstrução periférica individual.
Sobre a construção com mutirões, a equipe da assessoria técnica ainda aponta : “não se está produzindo mercadorias com o objetivo imediato de troca e valorização de capital (mesmo que indiretamente esse valor de uso seja socialmente apropriado pelo capital na medida em que abriga a força de trabalho) - o que lhe confere uma qualidade outra.” (USINA CTAH, 2008).
Essa prática coletiva envolve pessoas que se juntam para realizar um trabalho, produzir um produto que tem como principal objetivo servir para sua função original: se constrói uma laje para desfrutar dessa laje, de seu espaço e dos momentos que aquele lugar pode proporcionar. Apesar de haver valor de troca envolvido nessa laje, o foco principal da energia depositada por esses trabalhadores é desfrutar do seu resultado - ocupar e usar um espaço construído por eles. Diferente disso, o trabalhador da construção civil formal, ao produzir uma laje em uma obra, deposita seu esforço em um produto que tem como principal objetivo servir como mercadoria, que trará lucro a terceiros que não estão envolvidos em nenhuma parte da execução desta laje. Para além desse entendimento, ao se considerar mais o valor de uso sobre o valor de troca, a produção passa a ser pautada pela qualidade do projeto, dos materiais utilizados, dos espaços resultantes e também da tecnologia e das técnicas empregadas em sua execução (USINA CTAH, 2008).
Dessa forma, enquanto a prática dos mutirões individuais, autônomos, é basal para a construção das periferias das grandes cidades, há uma tentativa nas práticas arquitetônicas de introduzir os mutirões dentro dos projetos formais, buscando aproveitar dos conceitos de coletivização e de ajuda mútua para viabilizar construções e projetos, utilizando o mutirão como uma ferramenta. Como é o caso da Escola Pedra Furada em Sergipe, com atuação do Coletivo de Arquitetos em parceria com Sofia Mazzuco (CUAC) e Gustavo Fontes, que traz um projeto participativo que propõe a construção em mutirão de uma escola no Povoado da Pedra Furada.
Outro exemplo são os “Quintais Sustentáveis”, uma iniciativa da Embrapa em parceria com o Lar Fabiano de Cristo (unidade Casa de Timóteo) e fomento do CNPq, que busca estimular a produção e consumo de hortaliças, frutas e plantas medicinais em quintais de Boa Vista, Roraima. Diferente das construções autônomas, neste caso os mutirões são organizados dentro de uma organização coletiva: “para ser beneficiada com um Quintal Sustentável, a família deve, primeiramente, estar cadastrada na Casa de Timóteo. É feito então uma seleção, observando a disponibilidade e compromisso do grupo familiar para manutenção dos quintais e viabilidade dos espaços para instalação das hortas e pomares. Com as famílias selecionadas, iniciam-se as capacitações técnicas na linha de produção orgânica, com posterior doação de mudas e sementes para instalação inicial dos Quintais. Nessa etapa, o trabalho é realizado em mutirão, quando todas as famílias envolvidas ajudam na implantação dos quintais uma das outras.” (EQUIPE ARCHDAILY BRASIL, 2021).
Para além do entendimento dos mutirões como uma prática de trabalho coletivo destinado à solução de um problema individual, como é o caso dos mutirões corriqueiros nas periferias das cidades brasileiras, ou ainda, como uma ferramenta prática formadora da comunidade, como é a proposta da Escola Pedra Furada, ou também do mutirão inserido em uma prática coletiva de manutenção contínua, como é o caso da experiência em Roraima, ao longo da história da habitação social e da arquitetura no Brasil, os mutirões foram, majoritariamente conectados com os projetos autogestionários vinculados, em sua maioria, a movimentos sociais que lutam por moradia digna.
Esses mutirões têm sua origem na década de 1980, em São Paulo, quando havia um quadro de revolta em relação à política habitacional implantada há décadas pelo BNH. Segundo Nabil Bonduki “o aumento do desemprego, os despejos e a falta de qualquer solução habitacional, sobretudo para os setores de renda mais baixa, fortaleceram os movimentos de moradia.” (Bonduki, Nabil. 1997). Os movimentos cresceram numa conjuntura de grandes mobilizações, e a luta por moradia ganhou novas perspectivas a partir do mandato da prefeita Luiza Erundina e do Programa de Construção de Unidades Habitacionais em Mutirão e Augestão, também conhecido como Funaps Comunitário.
Importantes projetos para a arquitetura brasileira surgem a partir do Funaps, como é o caso dos mutirões da Fazenda da Juta, acompanhados pela Usina-CTAH em parceria com o Movimento Sem Terra Leste 1. Essas experiências em São Paulo na década de 1990, em coro com experiências latino-americanas como as uruguaias, colocam em pauta um fator fundamental que eleva o mutirão para além da ferramenta prática: a autogestão. “Entende-se por autogestão na produção da moradia um processo de gestão do empreendimento habitacional em que os futuros moradores, organizados em associações ou cooperativas, administram a construção das unidades habitacionais em todos os seus aspectos, a partir de regras e diretrizes estabelecidas pelo poder público, quando este participa financiando o empreendimento.” (Bonduki, Nabil. 1997)
É a partir da autogestão, aplicada por um coletivo organizado, que o mutirão deixa de ser uma ferramenta prática de produção, e se torna um espaço de autonomia. “o mutirão não traz por sí só a possibilidade de transformar o sistema, porém, as relações de produção que nele se demonstra e experimenta podem constituir alternativas ao modo de produção capitalista.” (USINA CTAH, 2008). Isso fica evidente no documentário Trabalhador coletivo: de dentro e através do mutirão, que reúne depoimentos, entrevistas e imagens atuais de diferentes momentos da luta do movimento social MST Leste 1 em relação ao mutirão Florestan Fernandes e José Maria Amaral na Cidade Tiradentes,em São Paulo, fomentado pelo Programa Minha Casa Minha Vida Entidades.
O entendimento do mutirão como um símbolo de poder popular vinculado à luta por moradia evidencia um importante aspecto, que está enraizado nas origens do conceito de mutyrõ: o fazer coletivo. O movimento social organizado é fundamental para pressionar o poder público buscando a conquista de políticas públicas e recursos para habitação. Historicamente foram poucas as oportunidades de desenvolver habitação social por autogestão, essas oportunidades foram, porém, conquistadas por meio de luta coletiva e pressão política.
Atualmente vivemos um histórico cenário brasileiro, com alto nível de desemprego e uma crise sanitária devido à pandemia de COVID-19 que estampam as consequências do déficit habitacional e da desigualdade de renda no país. Além disso, não há em uma das maiores cidades da América Latina, São Paulo, até esse momento, nenhum tipo de programa habitacional que considere a população de baixa renda por parte das esferas públicas do município, do estado e do governo federal.
Ao mesmo tempo, é nessa crise que observamos que as iniciativas coletivas, de solidariedade e ajuda mútua, são as que fazem a diferença para lidar com este cenário, como é o caso de muitas experiências em comunidades periféricas pelo Brasil. Dessa forma, um dos ensinamentos mais importantes da reflexão sobre o que é um mutirão, é entender que ele é fruto do trabalho coletivo, e é por isso um espaço de resistência, de coletividade e uma oportunidade para visualizar um outro tipo de prática arquitetônica e um outro entendimento em relação às lógicas construtivas hegemônicas.
Bibliografia
OLIVEIRA, Francisco de. O vício da virtude - Autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil, São Paulo, 2006.
USINA CTAH. Arquitetura, política e autogestão: um comentário sobre os mutirões habitacionais. São Paulo, 2008.
BONDUKI, Nabil. Autogestão na produção de habitação: um programa de qualidade e baixo custo. Salvador, 1996.
MOTYRÕ. Apresentação, 2021. disponível em: https://www.habitaracidade.com/motyr%C3%B5